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Resenha | O Mundo Invisível Entre Nós de Caitlín R. Kiernan


O Mundo Invisível Entre Nós de Caitlín R. Kiernan faz parte de uma coleção que reúne os seus melhores contos em dois volumes: Two Worlds and in Between, que traz histórias escritas entre 1993 e 2004 e Beneath an Oil-Dark Sea, que seleciona obras do período entre 2004 e 2012. Neste primeiro volume somos apresentados a um grande panorama de sua escrita, no qual é possível verificar a evolução de sua voz narrativa ao longo de uma década extremamente prolífica.  

Um ponto importante para entender a escrita da autora é que a cada nova publicação, seus contos passam por uma revisão, em suas próprias palavras nenhuma história está realmente concluída. O que acontece é o momento em que é obrigada a parar e escrever provisoriamente a palavra fim em cada uma delas. Essa afirmação se traduz durante a leitura de diversas formas, o que encontramos é apenas um capítulo da história de personagens complexos que trafegam pelo mesmo universo sombrio formado por romances, contos e histórias em quadrinhos.

Há muitos elementos de ligação entre as histórias, seja através do culto a deuses inomináveis ou as ramificações de seus rastros de destruição, ou a um local específico como um bar, uma rodovia ou uma casa, e até mesmo parentesco entre protagonistas. Nesta coleção há personagens que aparecem em múltiplos contos, que surgiram em um de seus romances ou que foram transportados para um deles posteriormente, que são protagonistas de outra escritora e que aqui recebem uma história de origem, que ganharam adaptação e ampliação de seu universo em histórias em quadrinhos, e muitos que encontraram a insanidade flertando com a sua perspectiva da mitologia lovecraftiana.

Seus textos são cheios de pistas que dão vida a esse universo compartilhado entre seres humanos, criaturas, monstros e deuses, que enriquem a experiência da leitura para um leitor atento e curioso. Com relação a classificação não há um gênero determinante em suas narrativas, nascidas da mistura do bizarro com o fantástico, o maravilhoso e o obsceno, que às vezes flertam com a ciência e às vezes pendem para o sobrenatural. Elas possuem uma tecitura tão homogênea que fica difícil definir as linhas entre horror, ficção científica e fantasia.

Caitlín R. Kiernan não diz que uma cena ou criatura é assustadora, sua escrita é que constrói essa percepção na mente do leitor, o medo rasteja por entre contextualizações e descrições, e quando você se dá conta os tentáculos de seu texto já estão mergulhados nos recônditos mais profundos de sua mente alimentando pesadelos. Às vezes uma história se inicia em um gênero, crescendo em suspense, e se metamorfoseia em outro de uma forma tão natural que você só consegue ver quando já aconteceu, ganhando vida através de uma linguagem poética e evocativa. 

Sua escrita evolui ao longo das páginas, conforme adquire experiência e encontra sua voz narrativa, partindo de uma redação truncada e repleta de metáforas nos primeiros escritos até textos que exploram múltiplos gêneros com propriedade e agilidade. Poucas vezes utiliza a narrativa direta, que segue a ordem do começo, meio e fim, preferindo uma narrativa fragmentada para contar suas histórias, cujos pedaços no presente e no passado se reúnem conforme as lembranças e traumas de personagens são engatilhados pela ação.

Há histórias que se utilizam de releituras de personagens conhecidos para explorar temas mais complexos, como O Vazio Eloquente, que acompanha a vida de Mina após a conclusão de Drácula e sua nova percepção do mundo e seus horrores; ou o perturbador Lágrimas Sete Vezes Sal, onde a história da Pequena Sereia serve como metáfora para discorrer sobre a percepção de não pertencimento a seu próprio corpo, discutindo a transexualidade de uma forma poética e sensível.

Elementos da realidade também ganham uma dissecação mais profunda através da ótica do fantástico, como A Essa Água, que se baseia em uma tragédia real para discutir o estupro e assassinato de uma jovem, que retorna em busca de vingança na forma de uma rusalka;  ou em Casas no Fundo do Mar, onde o protagonista tentar entender as razões por trás das crenças de sua namorada, fundadora de um culto de morte onde dezenas de pessoas participaram de um suicídio coletivo no mar, e seu papel nesse processo enquanto digere uma prova assustadora de que talvez ela possa estar certa.

Há também muita influência de Lovecraft em seus textos, como em Cartões-Postais do Rei das Marés, onde duas crianças descobrem uma exibição à beira da estrada que apresenta cadáveres de criaturas lovecraftianas; em Cebola, que explora os efeitos na mente de pessoas que tiveram um vislumbre de outras realidades aterrorizantes; em Armário 34, Gaveta 6, onde uma pesquisadora descobre um fóssil esquecido que veio Innsmouth e cujo estudo pode abalar tudo o que a humanidade sabe sobre a evolução; e ainda Andrômeda Entre as Pedras, onde uma família é guardiã de um portal para lugares onde vivem criaturas que querem destruir a realidade.

Há muita fantasia urbana, como as histórias protagonizadas por Dancy Flammarion, Les Fleurs Empoisonnées, onde ela enfrenta um trio de vampiros e um coven de bruxas canibais, e Waycross, onde uma feiticeira antiga a obriga a conhecer mais sobre si própria. As aventuras de Dancy foram transformadas em uma série em quadrinhos chamada Alabaster e o arco Wolves ganhou o Bram Stoker Award de Melhor Graphic Novel em 2013. E há também ficção científica mesclada com horror lovecraftiano como no assustador The Dry Salvages.

O que dá para afirmar é que todos seus textos são instigantes e que nos tiram do lugar comum das narrativas tradicionais, nos transportando para paisagens fabulosamente assombradas pelos pesadelos e sonhos mais coloridos e sombrios da autora.  Suas histórias nos oferecem uma gama de sensações, mesmo as que você venha a não gostar, é impossível ficar impassível diante de sua escrita, tamanha a sua qualidade como narradora de histórias. 

O Mundo Invisível Entre Nós foi uma grande surpresa, uma leitura que excedeu expectativas e que sem sombra de dúvidas entra como uma das melhores do ano.

   
  O Mundo Invisível Entre Nós (2020) | Ficha Técnica 
   Título original: Two Worlds and in Between (2011)
   Autora: Caitlín R. Kiernan
   Tradutora: Regiane Winarski 
   Editora: Darkside
   Páginas: 512 páginas
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   Nota: ☠☠☠☠☠☠☠ (10/10 Caveiras)

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1 Comentários

  1. Bahh que resenha show. Tô lendo e tenho a mesma sensação. Edição da Caveira faz jus ao Livro e qualidade.

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