
O Fantástico Amazônico: Guardiões da Terra é uma antologia organizada por Mário Bentes, Rodrigo Ortiz Vinholo e Daniela Hänggi que mergulha no imaginário amazônico, em histórias que exploram as ansiedades e preocupações contemporâneas referentes à exploração e destruição da natureza e do genocídio dos povos indígenas, através das lentes do insólito e do fantástico. São narrativas que relevam os horrores que se escondem por trás da vasta imensidão desconhecida da floresta, desde criaturas lendárias que assombram e são adoradas por moradores de pequenos vilarejos, mitos indígenas que caminham pela mata desde antes da chegada dos europeus, até a resistência heroica diante da ganância que motiva o desmatamento e a exploração ilegal da terra nos dias atuais.
"A Alma do Caraíba" de Alcides Saggioro Neto aborda como a invasão do homem branco na floresta é irrefreável e sem limites. A lenta e consistente destruição da fauna e flora fez com que gerações de povos indígenas fossem cada vez mais se retirando para o interior da mata, numa tentativa desesperada de enfrentar a escassez de caça e de manter intacto seu modo de vida. Um dia os céus foram tomados por fumaça e com o passar dos anos os indígenas notaram que lugares antes ocupados por plantações passaram a ser reclamados de volta pela natureza, bem como o retorno da caça. A resposta para essa questão chega na forma da história contada por um grupo forasteiros de sobreviventes, as cidades foram engolidas por um apocalipse e a ganância do homem branco se materializou em uma fome incontrolável por carne humana. A história oferece uma provocação moral interessante, uma reflexão sobre a perspectiva indígena da influência colonizadora e seu lento efeito apocalíptico em seu povo e cultura. Um dos usos mais inventivos para a metáfora do zumbi.
Em "A Última Missão" de Lucas Freitas um grupo de mercenários americanos desembarca no coração da floresta amazônica com a missão de recolher qualquer espécime de fauna e flora considerado passível de ser explorado e transformado em mercadoria. No entanto as coisas não saem como planejado e quando o grupo começa a ser atacado por uma criatura esquiva e a desaparecer um por um em meio ao inferno verde, paranoia e loucura tomam conta dos sobreviventes. Uma história repleta de ação e suspense que discute a exploração dos recursos naturais e como as garras do colonialismo ainda ferem nossa terra.
Lendas locais ganham vida em "As Visagens do São José" de Carol Peace, quando dois amigos que desfrutam da piscina de um clube começam a conversar sobre a arrepiante história do lugar, supostamente construído em cima de um cemitério. E o que começa como uma brincadeira que desafia o sobrenatural, logo se transforma em um encontro fantasmagórico que trará revelações e criará um novo vínculo entre os dois. Uma história que resgata a atmosfera dos causos de assombração e fala sobre aceitação e silenciamento. Assim como sentimentos reprimidos, a violência e horrores sociais que aconteceram em determinados lugares e que são esquecidos e enterrados pela história, de uma forma ou de outra, sempre encontrarão um jeito de retornar à superfície e confrontar aqueles que negam suas vozes.
"Café e Tabaco" de Ligia Domene é ambientado em um pequeno vilarejo às margens da floresta amazônica onde uma moça é preparada pela avó para ser uma rezadeira, responsável pelo conforto espiritual da população local, realizando desde benzimentos e proteções até partos e funerais. Um dia ela conhece um homem da cidade, por quem se apaixona e com quem casa. O problema dessa união é que o homem é cético e desdenha das crenças locais. Quando a avó morre e a moça, agora mulher, precisa assumir seu papel perante o vilarejo, encontra impedimento na figura do marido, que passa a ficar cada vez mais impaciente com a quantidade de pessoas indo até sua casa procurar ajuda. Quando surge uma oportunidade de confronto entre o misticismo o ceticismo, o resultado é catastrófico. Uma ótima história que versa sobre o choque de crenças e que é coroada por um final arrepiante que não poupa ninguém.
"Ela não Temia a Noite" de Mário Bentes carrega o sabor nostálgico das narrativas de tradição oral. O povo da lagarta-de-fogo vive na confluência do Rio Tapajós, uma de suas principais crenças é uma compreensão diferente da nossa noção de noite e dia, para eles a noite era percebida simplesmente como a ausência de Uát, o Sol, quando as trevas dominavam o mundo e tudo o que era maligno saia para fazer o mal. Dessa forma um dos maiores tabus tribais era que ninguém deveria sair da aldeia no momento em que Uát estivesse ausente. O nascimento de uma menina albina irá desafiar as crenças da tribo e mudar para sempre essa compreensão.
"Filha de Icamiabas" de Rodrigo Ortiz Vinholo é uma história que fala sobre o apagamento de uma herança cultural e a redescoberta traumática dessa identidade. A protagonista narra como herdou elementos indígenas através da história de seu bisavô, um aristocrata em declínio que saiu em busca de uma tribo de mulheres guerreiras, chamadas Icamiabas, e retornou com uma criança e um muiraquitã. O choque entre diferentes culturas e a falta de compreensão do outro, mesmo que seus ritos soem ininteligíveis e cruéis para nossa concepção, dão origem a um clico de horror e vingança que só se fechará através da aceitação e reconhecimento.
Maurício R. B. Campos possui quatro contos nessa antologia que formam um mosaico de uma história maior, um mistério sobrenatural no coração da floresta amazônica, contada a partir de pequenas cenas aparentemente independentes que se interconectam e se expandem ao longo das páginas. Em "Francis" um grupo de mercenários é contratado para encontrar uma pesquisadora e um espécime não especificado, produto de testes científicos, em um ponto remoto e de difícil acesso na mata. A busca começa a revelar pistas sobre a verdadeira natureza da estranha criatura, além da existência de seres fantásticos que fazem da imensidão verde seu lar e estão preparados para protegê-lo até a morte. Em "Os Primeiros Passos da Visagem Amazônida" conhecemos mais sobre a pesquisa que a empresa de biotecnologia fazia na floresta e a história da cientista desaparecida, que precisa aprender a conviver com uma estranha maldição. "Qué Qué!' mostra como a pesquisadora se perdeu na floresta e seu assustador encontro com a criatura mitológica que a mudou para sempre. E por fim, "Visita Amazônica" funciona como um epílogo, amarrando os eventos anteriores e oferecendo uma espécie de final.
Em "Krokujú" de Arthur Rodriguez, um fotógrafo contratado para tirar fotos da fauna e flora na Amazônia Peruana acaba sofrendo um acidente e cai do avião em uma região isolada da floresta. Ele acorda em meio a uma nuvem de agonia e se vê caído em meio a um vale quase inacessível com diversos ossos do corpo quebrados, enquanto sua mente vagueia para um estado mental de aceitação da morte. Tudo muda quando divisa um ser humanoide vindo em sua direção, é resgatado por ele e então é apresentado a uma Amazônia fantástica e exuberante, um novo modo de existir em comunhão com a natureza cujo conhecimento pela civilização mudaria completamente a nossa forma de se relacionar com o mundo. Mas o que devemos nos perguntar é: será que após anos de exploração e destruição da natureza, ela gostaria de viver em comunhão com a humanidade?
"O Despertar do Jurupari" de Eugênio Santomauro é ambientado em uma aldeia Yanomami, onde uma menina começa a demonstrar sinais de que o espirito de Jurupari está despertando em seu corpo. Ela começa a falar coisas que sua idade não lhe permitiram saber e animais começam a morrer a sua volta, seus pais assustados tentam descobrir uma maneira de libertá-la, entretanto Jurupari tem outros planos, que envolvem vingança contra qualquer um que ameaçar a natureza e seu povo. Uma história violenta e sangrenta sobre um espírito indígena agindo como protetor da natureza, que ilustra as inúmeras formas que a fauna, flora e povos da floresta são atacados por traficantes de animais, garimpeiros e outros seres horríveis que veem em suas existência apenas algo para ser explorado.
"O Homem de Branco" de Dante Serpento chega em uma pequena localidade e parece ter um poder de atração sobrenatural em toda a população, um charme mágico que atrai olhares e desperta emoções. Em seu caminho está um rapaz, que busca conhecer mais sobre sua origem e saber se as coisas fantásticas que sua mãe lhe contou sobre seu pai, que acabaram lhe relegando a uma existência em um hospício são reais ou não. Uma das melhores e mais instigantes histórias sobre o mito do boto que já li.
"Olho de Lula" de Leandro Gonçalves Machado é ambientado na época da construção da Transamazônica e mostra o que aconteceu com um grupo de trabalhadores, cujo único sobrevivente deu entrada em um hospital da região, entre a vida e morte, e levou mais de duzentos pontos nas costas. O homem estava em um estado de horror catatônico provocado pela dor e medo e não conseguia explicar os pedaços de corpos mastigados de seus colegas, só repetia sem parar que o bicho imitava grito humano. Uma história visceral com uma atmosfera de mistério sufocante e um clímax sangrento e arrepiante. Tudo isso é embalado em uma ótima escrita que retrata com perfeição diálogos e expressões regionais, e em poucas páginas consegue pintar um retrato vívido e emocionante da vida dos homens que desbravaram a floresta amazônica na tentativa de conectar os rincões afastados do país.
"Pajelança" de Alcides Saggioro Neto conta a história do jovem de uma tribo do Rio Negro que não conseguiu terminar seu treinamento como pajé, pois o governo decidiu construir uma barragem nas terras de sua aldeia e todo o povo foi desalojado. O novo local escolhido como moradia se mostrou difícil, não apenas caça e pesca eram escassos, mas doenças e conflitos com aldeias vizinhas, que também sofriam dos mesmos problemas, fizeram com que muitos fossem procurar uma vida melhor na cidade. Vivendo pelas ruas, entre outras almas imersas na miséria e pobreza, o jovem descobre que seus conhecimentos de pajé podem ajudar esse povo abandonado, mas logo aprenderá que a bondade no mundo do capitalismo selvagem, senão é passível de ser explorada e dar lucro, é respondida com violência. Mais um ótimo conto do autor que é cirúrgico em suas críticas.
Um traficante de animais se vê perdido na imensidão da floresta amazônica em "Perdido" de Rodrigo Ortiz Vinholo, e caminhando sem rumo pela linha tênue da loucura, se agarra nos farrapos de sua sanidade relembrando os motivos que o levaram até aquela situação, tentando compreender a sina que lhe acometeu. Vinholo pega uma lenda folclórica que muitas vezes é matizada em tons infantis e a imbui de uma atmosfera claustrofóbica de horror existencial inescapável, resultando em um conto sufocante e inesquecível.
Em "Sereníssima Cidade das Brancas" de Vitor Henrique Teodoro de Almeida um grupo de homens atravessa a imensidão verde amazônica buscando tesouros perdidos e acaba se deparando com as ruínas de uma cidade monumental em meio a mata. Quando entram em uma estrutura piramidal encontram diversos manuscritos de valor incalculável e insuflados pela cobiça enchem suas bolsas e mochilas com os objetos. Entretanto quando tentam refazer o caminho de volta percebem assustados que uma criatura os está observando e os confundindo com seu poderes sobrenaturais. Ela não os deixará escapar impunes dessa invasão. Mais ótima história que explora uma criatura folclórica clássica de forma arrepiante.
Em "Uaupés" de Eugênio Santomauro um oficial de saúde do exército é enviado para uma região do Amazonas conhecida pelos nativos como Uaupés, onde vivem três diferentes povos indígenas, para realizar uma demarcação de terras na tentativa de resolver os conflitos locais. Entretanto nem todos os indígenas são a favor de tal demarcação, eles consideram esse ato uma invasão, não apenas dos limites geográficos da floresta, mas também do tecido espiritual que a compõe. Para enfrentar o poderio tecnológico dos invasores poderes além da compreensão serão invocados, dando início a uma batalha sobrenatural que pode destruir tudo.
"Xamã Sanumá" de Marcelo Luiz Dias se passa no final da década de setenta, em um garimpo ilegal no norte de Roraima, onde um grupo de garimpeiros consegue capturar uma criatura estranha, uma serpente em chamas, um boitatá. A ideia é lucrar com a criatura mítica e a promessa de dinheiro fácil causa uma comoção entre os homens, entretanto a comemoração é interrompida por uma mulher yanomami, uma xamã, que tenta fazer um alerta ininteligível devido as barreiras linguísticas e a ganância que nubla a razão. Quando as circunstâncias fazem com que os garimpeiros compreendam o conteúdo do aviso é tarde demais e o local se torna palco de um banho de sangue. Uma história interessante que finaliza a antologia com altas doses de horror, vísceras e desespero.
O Fantástico Amazônico: Guardiões da Terra se destaca pela qualidade de suas histórias, com vozes únicas e criativas que se reúnem para formar uma antologia com forte personalidade. A ambientação na floresta amazônica é aproveitada ao máximo e oferece diferentes visões dos horrores e seres fantásticos que espreitam em sua imensidão claustrofóbica, embora a fonte real do terror seja a civilização e sua invasão e destruição da fauna e flora. Elementos do folclore são reconfigurados de formas assustadoras e inventivas, além de ótimas críticas que refletem as questões contemporâneas relacionadas à nossa percepção do imaginário amazônico. Os contos variam entre bons e ótimos, com grande parte deles permanecendo na última categoria. Um livro indispensável para os fãs de terror nacional.

O fantástico amazônico: guardiões da terra (2020) | Ficha Técnica
Organização: Mário Bentes, Rodrigo Ortiz Vinholo e Daniela Hänggi
Autores: Alcides Saggioro Neto, Maurício R. B. Campos et al.
Editora: Lendari
Páginas: 160 páginas Compre: Amazon
Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (10/10 Caveiras)
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