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Resenha | O Novo Horror, organização de Daniel Gruber e Irka Barrios

 

O Novo Horror é uma antologia que explora as ansiedades e medos contemporâneos, utilizando os tropos do gênero como metáforas para mergulhar nas raízes sociais e culturais da sociedade brasileira e evocar horrores que ecoam questões importantes e palpáveis que jazem marginalizadas, apodrecendo na forma de tabus no coração da discussão pública. São histórias que exploram o medo a partir da aura fantasmagórica da violência, trauma, intolerância e preconceito e seus ecos na sociedade e na criação de horrores reais. O novo horror não somente reproduz temas clássicos ou os ambienta em cenário nacional, mas os utiliza para revirar as entranhas pútridas da memória coletiva e produzir pesadelos que refletem fantasmas do nosso passado e presente, na expectativa de que no futuro, eles não nos assombrem novamente.

A protagonista de "Parece que vai chover" de Andrezza Postay está em mais um dia comum de trabalho, perdida em meio a reflexões sobre sua condição, quando uma insólita chuva de sangue altera para sempre sua realidade. É uma história que ilustra nossa impotência quando um acontecimento além do nosso controle invade nossa rotina diária e a forma como enfrentamos essa "ameaça" em um contexto onde nossas ações impactam não apenas a nós mesmos, mas também ao próximo. A chuva mantém as pessoas presas em seus abrigos e a recomendação é continuar abrigado até a chuva passar, mas o sangue não para de escorrer dos céus e o desespero começa a afogar as pessoas. Narrativa interessante para se pensar no horror no contexto pandêmico.

Em "Filho Puro" de Bruno Ribeiro, um pai começa a perceber que seu filho parece ter herdado aspectos de seu lado mais sombrio. Uma história visceral que utiliza a temática da "criança má" para discutir a violência e seus impactos nos primeiros anos de formação, desde a violência doméstica até a espetacularização da violência no entretenimento. E especialmente refletir a forma como os pais reagem à percepção de que seus filhos estão reproduzindo certos comportamentos seus, sejam eles violentos ou preconceituosos. Arrepiante e indigesto.

"A Parte de Dentro" de Irka Barrios oferece uma narrativa surreal sobre uma mulher que possui um estranho machucado em sua perna. É uma metáfora poderosa para os traumas da infância, sobre como certos casos são mal tratados e incompreendidos pelos pais e acabam se tornando um fardo que nos acompanha pela vida adulta. Traumas que às vezes se fazem sentir através da dor e que em outras jazem adormecidos por anos, esquecidos. Mas que no fim, se não confrontados, tratados, acabam nos engolindo.

Após receber uma mensagem sobre uma festa em um galpão vazio em um cais, uma área nobre da cidade abandonada há décadas, o protagonista de "A Porta Naval" de Daniel Galera, sai em busca dos prazeres da noite. Ao invés do clima festivo, o que encontra é um ambiente estranho, coroado por um navio de aparência insólita. Mal sabe ele que nas entranhas de aço da embarcação jaz um segredo sangrento. É um conto interessante que explora a predação de classes sociais de uma forma bem literal. 

"A Passagem" de Daniel Gruber narra o que aconteceu durante um jantar reconciliatório entre dois irmãos que há anos não se viam, o motivo era um conflito nascido das circunstâncias relacionadas à morte da mãe de ambos, que abandonou todos os tratamentos médicos para entrar em uma espécie de culto. Uma história arrepiante sobre os limites e as regiões cinzentas entre fanatismo e religião. Com um ótimo ritmo de suspense, o conto oferece desde os parágrafos iniciais uma sensação de estranheza que segue crescendo até o clímax explosivo.

Em "Redenção" Cláudia Lemes retorna à abordagem claustrofóbica sobre a temática da culpa e condenação (a mesma que explorou em Creed, conto em homenagem à Cemitério de Stephen King na Antologia Dark) ao apresentar um jovem de classe alta, que após atropelar e matar uma família recebe em seu julgamento uma pena branda, doação de cestas básicas. Sua família o leva para um retiro espiritual, de onde suspostamente sairá transformado, mas após presenciar um ritual violento, descobrirá que não existe fuga para sua verdadeira condenação. Mais um conto interessante que discute a forma como a sociedade pune diferente classes.

"Cordeiro de Deus" de Ismael Chaves é um conto de folk horror que explora os limites do fanatismo e da intolerância religiosa. Um jovem judeu chamado Ari ('piscadinha' Midsommar) precisa viajar pela primeira vez para a casa da família de sua esposa, após ela ter abandonado sua religião para se casar com ele. A família dela vive no interior e entrou em contato após sua mãe ter tentado suicídio. Desde o início situações estranhas e de intolerância se empilham como hóstias em um altar abandonado, mas nada podia prepará-lo para o início das celebrações religiosas. História bem construída com um final indigesto e angustiante, ainda mais quando você finalmente entende o motivo do título.

"Os Novos Residentes" de Isabor Quintiere oferece uma exploração sensorial do horror cuja criatividade é refrescante e arrepiante. O protagonista é cego e em sua casa não apenas reconhece de memória onde cada móvel fica, mas também cada som natural dos ambientes. Sua audição é tão boa que é capaz de identificar os problemas da moradia pelo som. O horror começa quando ele passa a ouvir sons baixos em outros cômodos, como se alguém estivesse se movendo devagar para não fazer barulho ou abrindo uma porta com muito cuidado. Aos poucos os sons familiares se tornam estranhos e a história adquire contornos de home invasion.

Em "Diáfano" de Alê Garcia, um homem lentamente descobre que elementos estranhos na sua vida começam a convergir para um horror além da imaginação. Uma história bem construída que explora com perfeição o medo de um "horror social" invadir e destruir a segurança familiar, especialmente em um contexto de preconceito onde a sociedade é agressiva e abertamente hostil e a família representa segurança e aceitação. A narrativa utiliza muito bem o sobrenatural como metáfora para explorar a mácula e a consequente desintegração da unidade familiar. 

"Quebra-Cabeça" de Juliane Vicente traz um olhar contemporâneo a um horror real moderno, a xenofobia. A história é ambientada na pandemia e discorre sobre os medos de ser um estrangeiro em um país intolerante, especialmente sobre ser uma mulher estrangeira nesse contexto caótico.

"Opiekun" de Matheus Borges, explora de forma interessante o misticismo e as crendices populares por trás das rezas e benzedeiras. Na trama um garoto com problemas respiratórios é levado por sua família em uma antiga benzedeira para resolver seus problemas de saúde de uma vez por todas. É uma história bem sútil que discute o confronto geracional de crenças, psiques antigas que ainda vivem em lugares afastados em contraposição com a psique contemporânea caminhando por essas terras. 

"Cemitério de Almas Vivas" de Úrsula Antunes discute a forma como a mente humana é capaz de distorcer a realidade para encaixar a sua perspectiva sempre como se fosse o lado certo da história, mesmo cometendo as maiores atrocidades. Uma narrativa temporalmente fragmentada, uma espécie de quebra-cabeças onírico onde o encaixar das peças ao invés de revelar segredos aumenta ainda mais a sensação de estranheza. Uma história de amor em cujas entranhas reside algo muito mais sombrio e doentio que aparenta na superfície. 

"O Título é um grito" de Nikelen Witter é um conto inteligente que discorre sobre a violência contra a mulher, um horror cotidiano repetido tantas vezes em manchetes de jornais que já não causa mais a comoção e revolta que deveria na sociedade. Na trama um grupo de amigos se reúne para mais uma noite de bebedeira, quando um deles aparece com um "problema" no porta malas do carro para ser resolvido. Curiosamente eles agem como se não fosse a primeira vez. Enquanto isso nas ruas uma aparição saída diretamente do que parece ser uma lenda urbana tenta entender sua condição e sua existência. O encontro desses personagens culminará em cenas arrepiantes de vingança e condenação.

"Purificação" de Larissa Prado é um conto visceral e eficiente que versa sobre infância e a forma como as crianças são suscetíveis e respondem à traumas e a influência de adultos. Um jovem casal de irmãos está morando com sua avó enquanto sua mãe está hospitalizada se recuperando de um problema de saúde. Apesar de ser bem tratado o jovem começa a achar que sua avó é uma bruxa e que ela está o impedindo de encontrar sua mãe. As coisas ficam sangrentas quando ele resolve tomar as rédeas da situação.

"A Mulher da Cabeça Muito Grande" de Oscar Nestarez possui um ar de fábula macabra que é aumentado exponencialmente pela narrativa à partir da perspectiva infantil. Preso em uma gaiola e assombrado pela imagem de uma mulher estranha com a cabeça muito grande, uma criança tenta entender sua situação e recuperar a memória de como foi parar ali. É uma narrativa angustiante, pois você percebe o que está acontecendo antes do jovem protagonista, mas é impotente e não pode fazer nada, a não ser o acompanhar em sua jornada assustadora até um final de cortar o coração. 

"O Motim" de Ana Lúcia Merege é o meu conto favorito, não só pela protagonista ser uma bibliotecária, mas por utilizar o medo como uma metáfora para algo que a nossa profissão está precisando enfrentar cada vez com maior frequência, em especial nas bibliotecas escolares: uma espécie de "censura" por parte da instituição e da comunidade de pais à certas obras. A história reafirma a posição de resistência do bibliotecário através do acesso à leitura. A protagonista precisa enfrentar esse movimento de repressão que é representado a partir de um viés imaginário, onde o conteúdo de uma obra ganha vida e assombra seu cotidiano, e no mundo real, onde um grupo de pais quer censurar qualquer obra que seja considerada "fora do padrão da moral e dos bons costumes". É interessante ver esse dilema real sendo representado e discutido através da literatura de terror. 

"Meretseger" de Gustavo Melo Czekster soa um pouco destoante do resto dos outros contos. É uma boa história de horror cósmico sobre um homem à beira da loucura atormentado pelas visões que teve nas profundezas de uma tumba egípcia, mas que parece não se aprofundar em nenhuma outra discussão além da temática que o próprio texto se propõe. 

"Charqueada" de Vitória Vozniak traz um texto desafiador, metafórico e sútil, mas altamente impactante. É uma narrativa sobre amadurecimento e sobre preconceito ambientada em um contexto histórico específico mas que ecoa um horror bem contemporâneo.

"A criança" de R. Tavares é um conto sombrio e misterioso. Um homem sentado na varanda de sua casa no interior espera que busquem a criança que está vivendo com ele. Supostamente essa criança é sua filha que desapareceu após o acidente e velório de sua esposa. Trouxeram a criança de volta para ele em um péssimo estado, doente e mal conseguindo pronunciar uma palavra, numa situação quase animalesca. O problema é que desde que a criança voltou coisas estranhas começaram a acontecer. Disseram que a criança estava amaldiçoada. Em meio a tudo isso, o homem se prepara para enfrentar aqueles que querem buscar a criança. 

"A Lua fará que te arrependas" de José Francisco Botelho é uma narrativa de terror histórico que desbrava um interior intacto de interferências humanas, onde as lendas ainda vivem e cujas cavernas sombrias e escuras guardam segredos mortais. A história recria uma expedição que deu muito, muito errado. Uma versão assustadora e efetiva de histórias sobre bruxas. 

   O Novo Horror (2021) | Ficha Técnica 
   Organizadores: Daniel Gruber e Irka Barrios
   Autores: Alê Garcia, Ana Lúcia Merege, Andrezza Postay et al.
   Editora: O Grifo
   Páginas: 256 páginas
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   Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (9/10 Caveiras)

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2 Comentários

  1. Que baita resenha! Obrigado por compartilhar suas impressões, conto por conto, sobre "O Novo Horror" . Foi um enorme privilégio estrear nessa antologia e fico muito feliz que você tenha gostado do meu conto "Cordeiro de Deus".

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  2. Muito obrigada pela resenha! Fiquei muito feliz por você ter gostado do meu conto e por estar a meu lado nessa batalha, que é de todos em nossa profissão (sim, sou bibliotecária também!)

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