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Resenha | Amplificador de Cesar Bravo


Amplificador é um livro marcado pelo amadurecimento da escrita de Cesar Bravo, no ápice do domínio de sua técnica e imaginação, uma continuação direta de 1618 que aprofunda sua dissecação dos medos e ansiedades que compõe a sociedade contemporânea, usando o município de Terra Cota como um mosaico vivo e pulsante que ilustra como o passado distante, recente e o presente estão conectados pelo sangue que irrigou o solo nacional durante toda a história. Seus horrores estão enraizados na realidade, onde o sobrenatural surge como um modo narrativo para discorrer sobre o terror tangível do cotidiano, como a ansiedade com relação as mudanças climáticas e como isso afeta a natureza e os nossos corpos e as mudanças que a tecnologia está produzindo nas relações sociais. Cesar Bravo amplifica a dose de sustos e vísceras explorando através de vinte e duas histórias a escuridão que transborda das rachaduras na nossa coletividade.

"Resistência Sistêmica Adquirida" retorna ao mesmo local do clímax de 1618, revelando vislumbres das inúmeras ramificações dos fatídicos acontecimentos do livro anterior que se desenvolverão ao longo desta obra, mostrando que ainda existem horrores escondidos sendo gestados, não apenas nas entranhas do solo de Terra Cota, mas também nas almas e corações de seus moradores e visitantes, cuja ganância e ignorância irão ensejar uma nova maré de horrores. Nos escombros claustrofóbicos do interior de uma mina de quartzo um grupo de pessoas está em uma jornada misteriosa em busca de algo valioso, entretanto desconhecem que o mal ainda habita aquele lugar. 

Em "Interferências" diversos personagens experimentam os auspícios sombrios do horror que se aproxima de Terra Cota. Na Raio Z Eletrônicos, Thierry em meio a aparelhos televisores antigos busca captar e gravar os estranhos sinais que pairam sobre a cidade, mas tais frequências suscitam respostas estranhas em seu corpo e mente. Na Fazenda dos Vicenzo, o silêncio da noite é interrompido por estranhos barulhos no meio mato e uma plantação de girassóis começa a se comportar de forma não natural. Na Comunidade do Piolho, um jovem apaixonado caminha pelas ruas do bairro de madrugada, seu maior medo é ser mais uma vítima da criminalidade, entretanto um encontro fortuito lhe mostra que existem coisas piores que a morte nesse planeta. E no Lar de Idosos Santa Dulce, uma enfermeira descobre que nem todos os horrores indizíveis que seus pacientes balbuciam no crepúsculo de suas vidas é fruto da senilidade.

"Laika" apresenta a história de uma cachorrinha que após seu dono falecer é abandonada pelas ruas de Terra Cota e testemunha não apenas o lado mais cruel do ser humano, mas também o sobrenatural que paira sob a cidade e esse contato a modifica de formas inusitadas. Este poderia ser apenas um conto menor que usa a perspectiva de um animal para oferecer uma visão ampla das mudanças que estão acontecendo em Terra Cota, se fosse apenas isso cumpriria seu papel a contento, entretanto é uma história carregada de emoção que não só oferece sangue e vísceras, mas também aquece o coração. "Tinnitus" é uma ópera death metal que em seu ápice dissonante evoca as notas de body horror mais lúgrubes de Frankenstein e A Pele que Habito. 

Na história um dos cientistas que estava por trás da expedição do primeiro conto, utiliza as estranhas sementes trazidas das entranhas da mina dar vida a um experimento macabro com um monte de pedaços de carne de pessoas que ele conhecia. "Dermoglifo" também resgata um personagem da primeira história e conhecemos em toda sua glória e horror os efeitos bizarros que o contato com a mina de quartzo ocasionam. Depois de sofrer um pequeno corte no dedo, seu machucado começa a inchar de forma não natural, estranheza que é coroada pelo aparecimento de estranhas manchas no seu braço. Em uma ida ao médico descobre que outras pessoas na cidade também estão sofrendo da mesma aflição desconhecida. E isso é apenas o começo do processo em que seu corpo desabrocha em uma flor de vísceras e dor. 

"Excreções Auriculares" oferece uma conclusão para a saga de horrores dos personagens da primeira história. Depois de notar que algo estranho e bizarro está acontecendo com seus companheiros de empreitada, Elias, decide fugir para a cidade de Três Rios em sua moto. Para evitar contatos indesejados ele atravessa uma trilha pouca usada de uma região de mata. O que não esperava é que o lugar já não é mais o mesmo, fauna e flora estão estranhas, transformadas e corrompidas por uma energia perturbadora e é no meio daquele lugar pútrido e desolador que começa a sentir um desconforto em seu ouvido, sangue e um pus fétido marcam o inicio de seu calvário. Um conto arrepiante que carrega a mesma ambientação de pavor do clássico A Cor que Caiu do Espaço de H. P. Lovecraft. Esse primeiro arco de personagens termina como uma ótima metáfora para as ansiedades referentes a exploração e destruição da natureza e os efeitos que tais atos podem ocasionar no corpo humano.

Em "Insônia", um psicólogo tenta entender a loucura que acomete seu paciente. Ele diz que não pode dormir devido a uma experiência assustadora que não se recorda com exatidão, e conforme ambos se debruçam sobre os resquícios de suas memórias, descobrem que existem destinos muito piores que a simples morte. Esse é mais um pedaço do quebra-cabeças assustador que compõe o grande mosaico de horrores de Terra Cota, os personagens podem não compreender com exatidão o tamanho do horror que estão envolvidos, mas o leitor que possui todas as peças vê com perfeição o cenário desolador. Cesar Bravo captura com perfeição essa sensação de apocalipse em andamento que permeia a sociedade e nossa pequenez diante das forças cósmicas e sistêmicas que gerem nossa existência.

A jornada de horror de Amplificador continua numa série de histórias mais curtas que fazem um panorama de Terra Cota e sua estranha infecção por algo não natural, que é experimentada em primeira mão pelas mais diversas pessoas. Em "Erupções Urbanas" uma personagem já conhecida presencia situações bizarras, como suas vizinhas se livrando de aparelhos tecnológicos e uma fauna alienígena em sua janela. Já em "Yasmin" uma menina acorda no meio da noite e vê diversos seres oriundos dos seus piores pesadelos no quintal de casa, quase como em uma paródia infernal dos quadros de Hieronymus Bosch. 

Em "Otosclerose", um jovem é vítima de bullying na escola e evita a todo custo participar da aula de educação física na piscina, entretanto os valentões estão preparando uma surpresa da qual ele não poderá escapar incólume, o que não esperavam é que essa pegadinha fosse despertar um horror que estava sendo gestado dentro do menino. Em "Aberrações Hereditárias" um homem solitário descobre que sua assistente virtual evoluiu para algo além de uma simples inteligência artificial e sua nova relação testará os limites de sua carne e sanidade. Cesar Bravo não segura a mão nos horrores infligidos a seus personagens, quando você pensa que já não consegue ficar mais enojado com uma descrição poética e densamente visual de uma evisceração, surge a seguinte e te surpreende para além da imaginação.

"Skincare" é protagonizado por uma mulher já no crepúsculo de seus dias que sente falta da aparência de seu corpo jovem, e encontra a resposta para seus sonhos e origem de seu pesadelo em uma estranha planta que surge em sua cozinha, e que parece ter uma consciência quase animalesca. Ela aprende rapidamente que as partes do seu corpo que entram em contato com a secreção que a planta produz parecem rejuvenescer, mas o preço cobrado pelo apagamento das marcas do tempo se torna mais sangrento conforme os resultados avançam. Em "Sudorese Noturna" um homem vive sozinho e atormentado pela falta da esposa, que morreu afogada em um acidente pelo qual se culpa até os dias de hoje. Sua memória é povoada pela última visão do corpo de sua amada, depois de passar dias na água, inchado e semidevorado. Suas ansiedades mentais passam para o mundo real quando ele começa a ouvir algo gotejando pela casa.

"KR7697PI" amplifica os terrores de Terra Cota ao trazer de volta personagens de 1618 descobrindo que o horror que achavam que tinha acabado está de volta, e desta vez pior que antes. Cesar Bravo provém o leitor com respostas e teorias para questões não respondidas anteriormente e também amplifica o repertório de questionamentos, mantendo o nível de suspense e mistério em níveis angustiantes. Um padre é chamado até uma chácara do interior para fazer um possível exorcismo em "Em Nome da Mãe", mesmo tal ato sendo contra as indicações de sua instituição. Como confessor da maioria dos moradores de Terra Cota sabe que algo inexplicável está acontecendo com os moradores locais, doenças estranhas, transformações corporais e mensagens do além transmitidas pelas ondas do rádio e televisão. Quando chega à casa afligida descobre que até mesmo a fé mais fervorosa talvez não ilumine lugares onde a mais profunda e desesperadora escuridão habita. 

Em "Pedaços" um pai de família tenta sustentar sua esposa e filha nesta máquina capitalista de moer sonhos alimentada por uma crise econômica interminável, que só faz aumentar a riqueza dos mais ricos enquanto joga cada vez mais famílias numa espiral inescapável em direção à miséria. Desempregado e com as esperanças se esvaindo a cada novo não do mercado de trabalho, ele recebe uma proposta bizarra de uma organização que oferece bastante dinheiro em troca de pedaços do corpo de seus clientes. Um dedo, uma mão, um braço, tudo pode ser negociado. Inicialmente fica enojado com a proposta, entretanto uma tragédia familiar o coloca em um caminho sem fim de pavor e desespero, onde curiosamente quanto mais a consciência fica pesada, menos o corpo pesa.

"Cadeia Alimentar" é mais uma história curta que funciona como um interlúdio e uma breve pausa do horror sufocante das narrativas anteriores, mostrando dois idosos, que possuem conexão com outras histórias, refletindo sobre as mortes e o mistério que paira sobre Terra Cota. Em "Caso Leya" um detetive está investigando informações relacionadas a eventos de histórias anteriores e se prepara para revisitar o Caso Leyla. Uma ocorrência de desaparecimento de uma moça, cuja única testemunha é a namorada que se encontra no hospital da cidade entre a vida e a morte, mais uma vítima das inúmeras doenças inexplicáveis. Sua ideia é de que essa moça assassinou a companheira e escondeu o corpo, entretanto o que vai encontrar nessa investigação é um horror muito além da sanidade.

Em "Assassinos Embrionários" um jovem entra numa espiral de solidão e ódio enquanto perde contato com a realidade que o cerca, e começa a criar uma persona digital baseada em mentiras e falsidades para cometer crimes virtuais. Entretanto mesmo a gratificação psicológica desses atos não é suficiente e entre mutilações de seu próprio corpo e o aumento do desprezo que sente pela própria família, encontra conforto e refúgio em comunidades online onde pode expressar livremente seus pensamentos de ódio e morte. Logo consegue uma arma e decide que transformará sua escola em um matadouro. O que ele não sabe é que essa é Terra Cota, a cidade onde horrores muito além da compreensão estão sempre a postos para mostrar o verdadeiro sentido da palavra medo.

Um personagem de um contos anteriores surge para nos guiar numa jornada de horror cósmico e existencial quase insuportável em "Colônia 358", uma história que oferece respostas, ao mesmo tempo que cria questões assustadoras, ultrapassando o espaço-tempo através de geometrias não-euclidianas e horrores indescritíveis. As implicações que surgem no horizonte do universo dos livros de Cesar Bravo são aterrorizantes e talvez você também tenha um pedaço da sua sanidade comprometido irreversivelmente com os conceitos explorados nessa história. A última parte do livro é composta por dois contos que retomam a história de personagens de 1618, amarram os acontecimentos dos contos e funcionam como clímax do livro. Em "Chamada a Cobrar" um idoso e um garoto modificados pelo contato com o que havia nas profundezas da mina estão se sintonizando na mesma frequência dos horrores de Terra Cota e descobrem que precisam retornar para onde tudo começou. Esse retorno culmina em "Deflexões Subterrâneas", um final emocionante e lovecraftiano para uma história cheia de camadas e personagens, que assombram nossa mente muito tempo após a leitura da última linha.

É difícil escolher uma história favorita em Amplificador, o menu macabro oferecido por Cesar Bravo é diverso, visceral, completo e de qualidade elevada com narrativas que fertilizam o solo da mente e conceitos que produzem uma safra de pesadelos perturbadores e assustadores. Há mais de uma década na minha primeira resenha de um livro do Cesar Bravo, ainda publicado de forma independente, afirmei que ele se tornaria um dos grandes nomes da literatura de terror brasileira. E Amplificador é a prova materializada dessa afirmação. É Cesar Bravo no ápice de sua escrita e imaginação. 

  Amplificador (2023) | Ficha Técnica 
   Autor: Cesar Bravo
   Editora: Darkside Books
   Páginas: 352 páginas
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   Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (10/10 Caveiras)

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