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Resenha | Com Sangue de Stephen King

Com Sangue é uma coleção com quatro histórias de Stephen King: O Telefone do Sr. Harrigan, A Vida de Chuck, Com Sangue e Rato. O título original, If It Bleeds, faz referência a uma expressão jornalística em inglês, "If it bleeds, it leads", algo como "onde há sangue, há manchete", traduzida na edição nacional como "qualquer notícia com sangue vende." 

A expressão é usada para descrever matérias sensacionalistas que se aproveitam de mortes e violência para conseguir audiência, e se encaixa com perfeição como título para a história protagonizada por Holly Gibney. No geral a obra é uma adição interessante ao corpus considerável de ficção curta de Stephen King, com doses de suspense, emoção e horror, mas em alguns momentos passa a impressão de ser uma edição requentada de velhas premissas embaladas em nostalgia para os novos tempos.

"O Telefone do Sr. Harrigan" é um bom exemplo disso, sua premissa ecoa trabalhos recentes do próprio Stephen King, como A Pequena Caixa de Gwendy, e clássicos como A Caixa de Richard Matheson. Histórias onde os protagonistas encontram um aparelho tecnológico que oferece a seu portador acesso a uma força sobrenatural capaz de interferir em sua realidade e os levam inexoravelmente em direção a um dilema moral, com uma ou várias mortes no caminho. É a clássica premissa de A pata do macaco de W. W. Jacobs modernizada, onde o horror advém de consequências não intencionais relacionados a interferência no curso do destino.

Craig na infância desenvolveu uma relação de amizade com o Sr. Harrigan, um excêntrico bilionário idoso que o contratou para ler livros de literatura clássica para ele e ajudá-lo em pequenos serviços na casa. Um dos momentos mais marcantes dessa relação foi quando Craig presentou o Sr. Harrigan com um iPhone, destacando as incríveis facilidades do acesso móvel à informação. O Sr. Harrigan acaba se viciando no aparelho, tanto que Craig dá um jeito de que ele seja enterrado com o dispositivo.

Tempos depois, quando a vida lhe apresenta um momento difícil Craig decide ligar para o número de seu velho amigo para falar sobre seus problemas e ouvir sua voz através da mensagem de correio pré-gravada. Inicialmente fica surpreso com o celular funcionando embaixo da terra, mas logo esquece e discorre sobre seus problemas na escola. É após a ligação que os os horrores começam a acontecer e surge uma dúvida, insanamente angustiante, de que há alguém do outro lado ouvindo aquela ligação.

"O Telefone do Sr. Harrigan" é uma leitura assustadoramente divertida, Stephen King sabe como criar personagens profundos e carismáticos e explorar suas dúvidas e dores interiores. Com o insólito e o fantástico invadindo sua rotina diária e alterando, para o bem ou para o mal, de forma irremediável sua percepção de mundo. É uma história emocionante e arrepiante, mas que não acrescenta nenhum elemento novo à citada premissa, a não ser a sensação incômoda e persistente de ser uma propaganda explícita aos produtos da Apple.

"A Vida de Chuck" é a narrativa mais experimental de Stephen King no livro, uma leitura que parte seu coração em pedaços ao discorrer sobre vida, morte e tudo aquilo que existe na interseção desses dois conceitos. A história se divide em três atos começando a partir do seu fim e avançando até o que seria seu início, revelando segredos e reflexões ao longo do caminho, a partir de uma poderosa metáfora sobre o mundo que existe dentro de cada um de nós.

Stephen King usa um conceito comum quando discutimos sobre a morte de um ancião, principalmente em sociedades baseadas em culturas orais, em que comparamos o fim de sua existência à imagem de uma biblioteca em chamas, devido a quantidade de conhecimento e experiências que se perde no processo. A ideia do conto é similar. Usando citações literárias como amarras para sua argumentação o texto se mostra desafiador e complexo para uma leitura rápida e interpretação rasa. É uma profunda reflexão sobre os significados da vida.

Marty Anderson é um professor do ensino fundamental que descobre a incapacidade de manter a sua rotina em meio ao que parece ser o apocalipse. O que mais chama a sua atenção não são os desastres naturais impulsionados por mudanças climáticas, as prateleiras de supermercados vazias ou a internet lentamente desaparecendo e deixando o mundo em um apagão informacional. São os anúncios da aposentadoria de Chuck, que parecem se tornar onipresentes aparecendo nas mais diversas superfícies e locais. Qual será o significado disso tudo?

"Com Sangue" explora mais uma vez a combinação perfeita entre histórias de detetive e suspense sobrenatural que resultou nos sucessos da Trilogia de Mr. Mercedes e Outsider. É o primeiro caso solo de Holly Gibney, que figurava como membro das equipes de investigação dos romances citados, e que desta vez persegue uma "criatura" semelhante à que enfrentou com o detetive Ralph Anderson em Outsider. Isso só é possível devido a todo conhecimento que acumulou nos confrontos anteriores, de modo que para esta leitura é imprescindível ao menos conhecer estes eventos. O próprio andamento narrativo, para explicar a evolução da personagem ou como chegou a determinada conclusão, revela vários pontos chave do enredo dessas histórias.

"Rato" retorna à mesma premissa de "O Telefone do Sr. Harrigan" só que desta vez a conexão com o sobrenatural é a partir da figura de um animal, o do título, que concede ao protagonista um desejo cuja realização está associada a um dilema moral importante. Outro aspecto importante da história advém da sensação claustrofóbica de paranoia e isolamento do protagonista escritor, Drew Larson, e sua frustação com o bloqueio de escrita, ecoando em alguns aspectos Jack Torrance de O Iluminado.

Quando a inspiração para um romance de faroeste surge na mente de um professor de inglês, com um histórico problemático em relação a seu  processo de criação literária, ele decide passar algumas semanas em uma cabana isolada no norte do Maine para colocar as ideias no papel. O que não imaginava é que sua escrita seria impactada por três elementos: uma tempestade que ameaça cortar sua comunicação com o "mundo exterior", uma gripe debilitante e um misterioso rato falante.

Com Sangue é um livro repleto de todos os elementos que os fãs de Stephen King mais apreciam em suas histórias, onde revisita temas, personagens e ideias de obras anteriores. Talvez por isso o saldo final da leitura seja tão comum e sem grandes destaques, à exceção do ótimo A Vida de Chuck, tudo soa tão familiar. É como se você já estivesse estado ali e lido aquela passagem antes. Grande parte da surpresa durante a leitura se esvai em uma estrutura, que embora embora entretenha e capture sua atenção, acaba sendo previsível por remeter em diversos momentos algum trabalho anterior.

   Com Sangue (2020) | Ficha Técnica 
   Título original: If It Bleeds (2020)
    Autor: Stephen King
   Tradutora: Regiane Winarski
   Editora: Suma
   Páginas: 400 páginas
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   Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (7/10 Caveiras)

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