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Resenha | Agouro de Márcio Benjamin


É difícil dizer com precisão onde nasce o horror que permeia a narrativa de Márcio Benjamin, como um exímio contador de histórias ele possui a capacidade de transportar a tradição e a autenticidade dos causos sobrenaturais e de assombração, da oralidade para a cultura escrita, sem perder a essência e a eficácia dessas histórias em arrepiar e assombrar o leitor/ouvinte. Mais do que a simplicidade e a naturalidade com que o sobrenatural é inserido no dia a dia das pessoas e no sistema de crenças do sertão, ou nas descrições imersivas e poéticas sobre horrores antigos ou nascidos da ambição do homem. Há algo em sua escrita que desperta uma sensação primal de atenção, que amplia nossos sentidos durante a leitura e fertiliza o solo da mente para uma safra de pesadelos arrepiantes e verossímeis.

Seu texto evoca a nostalgia dos causos de horror ouvidos na infância, onde monstros eram reais e cada palavra de uma história de terror alcançava as profundezas da nossa imaginação. Tente se lembrar das primeiras histórias de assombração que você ouviu na sua vida, aquelas que te arrepiaram, te tiraram o sono à noite e fizeram você chamar seus pais, pois naquele instante de solidão no escuro, você tinha a plena certeza de que algo que não era deste mundo estava te fazendo companhia. É essa sensação crua de medo puro que Márcio Benjamin consegue despertar com suas histórias.

Agouro é composto por treze contos ambientados no sertão, que se destacam pela sensibilidade de seus diálogos autênticos, em retratar as particularidades do modo de falar das pessoas da região, e pela exploração das crenças populares como aspectos identitários imprescindíveis para se compreender as formas como o medo é representado nestas narrativas regionais.

Seja a inspiração na religiosidade e na figura do demônio, presente como uma entidade física nas paisagens do sertão e acessível para a realização de pactos, como em "Sete Cordas", onde um violeiro relembra as benesses e maldições de um trato com um estranho de preto, e "Sino de Igreja", onde um casal tenta burlar um pacto demoníaco, que discorrem não apenas sobre o sobrenatural mas também sobre as dificuldades da vida sertaneja e os caminhos que levam a medidas extremas. 

Em "Um Gole de Sol" um motorista decide parar para ajudar uma mulher retirante que caminha sob o sol com uma criança nos braços. Ele oferece água, um pouco de comida e uma carona para qualquer lugar, porém descobre que às vezes é tarde demais para ajudar alguém. Uma arrepiante história de assombração que nos faz pensar sobre as condições dos mais pobres no sertão e em quantos anônimos não perderam a vida no caminho em busca de uma vida melhor.

Em "Mar de Lua" um pequeno povoado é assolado por um horror noturno, começa com animais de estimação sendo destroçados e encontrados em pedaços.  Logo seres humanos passam a desaparecer e seus pedaços são trazidos pela maré. Uma abordagem interessante de um mito conhecido que lhe dá um toque de veracidade arrepiante. Em "Alfenim" uma menina enfrenta a realidade dura da extrema pobreza, vivendo em meio a seca brutal e fome constante. Um dia uma idosa a leva para comer em uma casa, mas o que parece ser um gesto de generosidade esconde intenções sombrias. A construção inteligente da narrativa conduz o leitor suavemente a uma conclusão arrepiante.

A fome a seca também são uma constante em "Lajeado Vermelho", onde o surgimento de uma seita que parece ter resposta para esses problemas alimenta a esperança das pessoas. Mas para o solo infértil tornar-se fértil é necessário um sacrifício de sangue. "O Açude" é uma clássica história de assombração. No meio da noite uma mãe angustiada espera a chegada de seu filho, que havia ido brincar no açude, seu coração bate mais pesado quando vê no horizonte uma figura molhada. "Miguel" parece funcionar bem como uma continuação para O Açude. A mãe se nega a aceitar a morte do filho questionada por suas aparições, porém seu marido não acredita nisso, tanto que ela é obrigada a tomar medidas drásticas para chamar sua atenção.

"Asas" é um conto curto que descreve de forma certeira o coração do sertanejo que crê no sobrenatural, onde certas situações específicas, vistas sob uma ótica especial, moldam as ações das pessoas e tem grande influência no seu dia a dia. "A Sombra das Lâmpadas" amplia essa noção adicionando a visão do estrangeiro, aquele que vem de fora da comunidade e que acha engraçado algo feito para a sobrevivência e não entende a mentalidade daquele povo.

"Sabedoria popular" é uma história sobre a brutalidade da natureza e sua completa indiferença para com assuntos humanos, embora nós tentemos através do misticismo atribuir-lhe valores e tentar entender seus desígnios. É brutal, tão pungente quanto o clássico A Loteria de Shirley Jackson. "O Olho de Sussuarana" versa sobre a exploração da terra, o extrativismo mineral, suas chagas na população, e nas pedras preciosas arrancadas do ventre da terra a custo de suor e sangue. "Agouro" é uma história de assombração e vingança, onde erros do passado retornam para buscar reparação por injustiças antigas.

Agouro, assim como Maldito Sertão, é uma coleção de histórias de horror imersa na rica cultura popular brasileira, seus narradores são vozes vivas que nos transportam para o mundo folclórico da cultura nordestina. Leitura altamente recomendada.

   Agouro (2019) | Ficha Técnica 
   Autor: Márcio Benjamin
   Editora: Escribas
   Páginas: 100 páginas
   Compre: Amazon
   Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (10/10 Caveiras)

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1 Comentários

  1. Márcio Benjamin é incrivelmente surreal! Todos os seus livros são de tirar o fôlego e provoca muitas reflexões, que massa ler uma resenha de uma obra dele aqui! <3

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