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Resenha | Pactos, org. de Marcia Heloisa



Histórias de pactos demoníacos e de maldições diabólicas estão presentes desde os primórdios da humanidade nos relatos folclóricos das mais diversas culturas e religiões. Se a figura de Satã mudou bastante ao longo dos séculos, o cerne e o propósito destas narrativas permanece quase inalterável, funcionando como uma espécie de fábula sobre a moralidade de sua época, bem como uma metáfora que ilustra o confronto do ser humano com a personificação do mal, seja esta uma faceta de si próprio ou a manifestação de uma entidade sobrenatural.

A premissa clássica envolve fazer um pacto com o Diabo ou algum demônio de menor expressão, acordado de forma oral ou escrita, onde uma alma humana é oferecida em troca de favores diabólicos. O resultado final depende do que a história pretende ilustrar como moral, o protagonista pode encontrar a condenação eterna para si próprio ou para aqueles que ama, assim como pode conquistar sua liberdade enganando o Diabo ou redescobrindo sua fé. Esse é o contexto explorado pela coletânea Pactos, organizada por Marcia Heloisa, que apresenta seis histórias escritas por autores norte-americanos entre 1824 e 1936.

“O Jovem Goodman Brown” de Nathaniel Hawthorne, publicado em 1835, explora o universo das crenças puritanas da Nova Inglaterra do século XVII. O jovem protagonista inicia uma inexplicável jornada, cruzando ao pôr do sol as ruas da aldeia de Salem, rumo as profundezas da floresta para encontrar um estranho viajante que mudará para sempre sua vida. A história segue os moldes clássicos do gênero e usa um tom sombrio para tecer críticas à forma como a religiosidade é interpretada, especialmente a partir da percepção pessoal sobre os atos pecaminosos da sociedade e como enfrentar e não ser destruído por esse conhecimento. (9/10)

"O Diabo e Daniel Webster" de Stephen Vincent Benét, publicado em 1936, é uma história clássica sobre enganar o Diabo, onde um fazendeiro desafortunado vende sua alma em busca de salvação econômica. Quando o período estipulado no contrato chega ao fim e sua alma está prestes a ser coletada, ele busca ajuda de Daniel Webster, famoso orador e advogado. A história é uma ode de patriotismo, buscando insuflar um sentimento de nacionalismo no contexto pós-depressão, que soa estranha e brega nos dias atuais. Sua premissa é extremamente reconhecível graças a reprodução ad infinitum na cultura popular americana. A escrita preza mais por um tom de ironia do que suspense. (6/10)

“Vendida para Satã” de Mark Twain, publicado em 1904, é outra história que se aproveita de um tom irônico em detrimento do horror, na verdade se aproxima mais da ficção-científica para discutir questões relacionadas à ganancia e o progresso tecnológico. O protagonista decide vender sua alma ao Diabo em troca de dinheiro fácil, entretanto a descoberta de que o mesmo é feito de um elemento radioativo recém-descoberto, faz com que comece a se questionar na possibilidade de lucrar mais com o próprio demônio do que um contrato em si. (6/10)

“O Diabo no Campanário” de Edgar Allan Poe, publicado em 1839, é um conto estranho, uma espécie de sátira ambientada em uma cidade de nome irônico onde a população é obcecada pelo tempo e é consumida por uma confusão quando um estranho estrangeiro decide mexer no relógio da cidade. A história é basicamente isso e a maior parte das páginas são descrições lugares e personagens que não parecem fazer muito sentido. Na busca para tentar entender o contexto de publicação desse conto, encontrei um artigo interessante chamado "Carlyle in the Belfry: Poe's Gothic Polemic in Fiction" de Richard Fusco.

A tese defendida pelo autor é de que “O Diabo no Campanário” e suas descrições servem para satirizar a obra de Thomas Carlyle, um escritor e historiador da era vitoriana, cuja filosofia e competência intelectual eram menosprezadas por Poe. Fusco fala sobre a identificação de mais de vinte alusões, longas e breves, a Carlyle nas obras de Poe. De forma bem resumida e simplificada, a crítica deste conto em especial é sobre os conceitos que Carlyle apresenta em sua obra "Sartor", onde o tempo se dilata para estimular uma autorreflexão. Poe utiliza a mesma ideia de forma alegórica para destacar a rigidez intelectual do próprio Carlyle, sua crítica é dirigida a escola de pensamento do autor, o representando simbolicamente como "um demônio governando uma sociedade insípida e intelectualmente hermética"*. (5/10)

“O Diabo e Tom Walker” de Washington Irving, publicado em 1824, é a história clássica de pacto demoníaco com um final deliciosamente macabro. Tom Walker está passando por problemas financeiros quando, ao pegar um atalho em meio a um pântano perto de sua casa, encontra o Diabo. A escrita é bastante efetiva em criar um clima de suspense, a história é narrada como se fosse um lenda local, misturando com perfeição um tom irônico com horror. (8/10) 

“Como Vencer o Diabo” de Harriet Beecher Stowe, 1887, é um conto curto que oferece um sopro de criatividade e diversidade à premissa da coletânea, sua história está ligada às tradições folclóricas, alegorias de pertencimento a um local e as camadas históricas deixadas por gerações anteriores, sejam elas manifestações físicas de ocupação ou simbólicas e culturais, percebidas a partir de suas crenças, misticismos e lendas. (8/10)

Pactos é uma leitura divertida e interessante, mas seu recorte especificamente norte-americano parece tolher seu potencial, quase um terço do livro é composto por pôsteres de filmes, espaço que poderia ser utilizado para ampliar seu escopo e diversidade cultural e geográfica inserindo contos clássicos de autores europeus, asiáticos e até mesmo de nacionais, nossa literatura regional é recheada de especialistas em enganar o demônio com o jeitinho brasileiro.  

  Pactos (2022) | Ficha Técnica 
   Autores: Edgar Allan Poe; Nathaniel Hawthorne; Mark Twain; et al.
   Organizadora e Tradutora: Marcia Heloisa
   Editora: Darkside Books
   Páginas: 208 páginas
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   Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (7/10 Caveiras)


*FUSCO, Richard. Carlyle in the Belfry: Poe's Gothic Polemic in Fiction. Carlyle Studies Annual, Philadelphia, n. 19, p.49-61, 1999-2000. 

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